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terça-feira, 31 de agosto de 2010

Teve início ontem, na ABL, o ciclo de conferências Contar a vida alheia. O primeiro encontro foi com a historiadora Mary del Priore, que falou sobre "Caçadores de almas: biógrafos, biografias e história". Bom, contar a vida alheia é, desde sempre, o que a literatura e a história fazem. E ontem Mary del Priore justamente aproximou essas duas disciplinas, uma vez que seria impossível, como queria a história, narrar a vida de alguém com premissas científicas, simplesmente porque a história também se vale da narrativa para construir a sua verdade. O máximo que um historiador conseguiria, mesmo respaldado por documentos que lhe assegurariam fidedignidade sobre os fatos narrados, seria a construção de uma verdade discursiva, não da verdade inquestionável. As biografias, que repousam entre o trabalho jornalístico, histórico e literário, ao mesmo tempo que seriam um documento asseverando a verdade contida no relato - principalmente se pensarmos no pacto autobiográfico de Lejeune -, também suscita dúvidas sobre o mesmo relato, já que o biógrafo utiliza também sua memória, sua imaginação, suas escolhas, enfim. Nesse sentido, na construção de um texto, seja ele biográfico ou não, poderíamos dizer que se trata, no final das contas, de ficção. É essa uma questão bastante ampla e complexa, com várias direções a serem tomadas, mas não me ocuparei delas no momento. Basta, por ora, situarmos a biografia num entrelugar entre história, literatura e jornalismo, agregando para si características dessas três construções discursivas.
Uma questão que vale a pena sublinhar é o interesse que a vida alheia desperta em nós, principalmente na atualidade. Programas televisivos e revistas de fofocas promovem uma maciça exposição da intimidade alheia, que encontra no público pronta receptividade, como se não soubéssemos mais viver sem as notícias dos famosos, ou melhor, como se elas nos fossem imprescindíveis para a constituição de nosso próprio eu. Pautamos nossas condutas de acordo com as fotos das revistas e com o comportamento real encenado em Big Brothers da vida. Talvez essa seja uma ferramenta eficaz para a produção de corpos dóceis, para a produção de subjetividades, para o agenciamento de desejo da nossa sociedade de controle, como pensou Deleuze. Uma última questão para finalizar. O que despertaria interesse, afinal de contas, no modo de vida de um anônimo, de um BBB, que, muitas vezes, para não dizer todas as vezes, é ridícula, nada edificante. O Sr. José, por exemplo, personagem de Todos os nomes, do Saramago, ocupava-se colecionando informações biográficas de pessoas famosas na construção de suas biografias. Era um hobby seu - a ocupação com a vida alheia. Mas a ocupação com a vida alheia de pessoas já famosas - não vou entrar no mérito da seleção - poderia se explicar justamente por serem pessoas famosas. Até o dia que o acaso lhe colocou nas mãos a vida de uma mulher de 36 anos totalmente desconhecida. E o seu interesse adveio justamente do seu desconhecimento - era preciso conhecê-la, afinal agora somos todos indivíduos, todos temos um nome, saímos da massa anônima da sociedade de soberania para atingirmos alguma importância na sociedade disciplinar e na sociedade de controle. Segundo Sr. José, "para a Conservatória Geral do Registro Civil não existem assuntos íntimos". Vamos continuar vigiando e sendo vigiados... Assim que eu finalizar o romance venho escrever as minhas considerações. Até.

sábado, 28 de agosto de 2010

Recado

Livros são cartas escritas para os amigos, só que mais extensas. É com esta citação de Jean Paul que Peter Sloterdijk abre sua conferência intitulada Regras para o parque humano: uma resposta à carta de Heidegger sobre o humanismo, pronunciada na cidade da Basiléia a 15 de julho de 1997 e publicada, aqui no Brasil, 3 anos mais tarde. Se livros são cartas mais extensas endereçadas aos amigos, um post é apenas um recado. E é apenas um recado o que eu tenho pra dar no momento: leiam este livro. Qualquer coisa que eu me aventure a escrever sobre minha mais recente leitura será insuficiente para aprofundar as questões apresentadas pelo autor. Por limitação minha, é certo, mas ainda insuficiente. Posso apenas adiantar que é uma leitura importante para pensar a nossa sociedade contemporânea, midiática e pós-humanista.

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Vida, minha vida

Uma vez disse a um grande amigo meu que queria ter a vida dele. Adoraria me dedicar exclusivamente aos estudos, ter tempo para assistir a filmes, peças, exposições, shows. Adoraria também fazer quantos cursos eu quisesse, participar de congressos, seminários, fóruns e tudo o mais que me desse na telha. Mas minha vida não me permite esse luxo. O tempo me é escasso, é um bem de que não disponho. Para conseguir fazer os cursos que estou fazendo como ouvinte este semestre, uma operação de guerra precisou ser muito bem planejada e articulada. Se uma peça do esquema falha, todo o planejamento é comprometido. Ontem isso aconteceu. Toda terça-feira a babá chega às 8 horas para que eu consiga chegar a tempo na UERJ. Como a Elisa ficaria em casa, dispensei a babá. Mas aí o imprevisto deu as caras. Maria Eugênia adoeceu, acordou de madrugada reclamando de dor de ouvido, e lá foi ela, assim que o dia amanheceu, com a Elisa para o pronto-socorro. Babá dispensada, fiquei eu em casa com a Maria Antônia, aflito vendo os ponteiros do relógio prosseguirem seu trabalho. Ligo para a babá, mas já era tarde, nada feito. O que não tem solução, solucionado está, diz o ditado. Cheguei atrasado na aula, não pude adiantar minhas leituras na biblioteca, e pensei na vida que eu queria ter. E foi pensando nessa vida que me dei conta que o tempo que me falta é muito bem empregado. Se por um lado não posso fazer tudo que eu gostaria, por outro as minhas princesinhas preenchem minhas horas maravilhosamente. Minhas filhas são o máximo! E lindas! E tagarelas, e bailarinas, e engraçadas, e divertidas, e inteligentes, e bagunceiras, e espertas e tudo o mais de bom que vocês puderem imaginar. Tudo bem, cheguei atrasado à aula, e daí? Iria à tardinha à ABL assistir a conferência "MPB e tropicalismos", com o José Miguel Wisnik. Outro imprevisto e lá vou eu buscar as princesinhas no colégio, pensando na minha vida e nas minhas escolhas. Acho que não preciso dizer que é covardia, porque as minhas filhas sempre vão ganhar a parada. Se sobrar um tempinho, leio mais algumas páginas, vejo um filme ou aprendo mais alguma coisa. Só se é criança uma vez, dizem, mas isso é mentira, porque, com elas, sou criança de novo.

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Umas outras realidades alheias

Primeiro dia do curso Visões da literatura a partir de Walter Benjamin: Memória, trauma, testemunho, na PUC. Sobre a aula não tenho nada a dizer, sabe como é, primeiro dia de aula serviu apenas para as apresentações de praxe. Mas vale o registro de minha impressão ao chegar na PUC - um outro mundo, uma outra realidade completamente diferente da minha. Olhando o vaievem dos filhos da puc (perdoem-me, não resisti ao trocadilho), ficou evidente como eu era um corpo estranho naquele lugar. Acho que a minha vestimenta de operário da literatura, seja lá o que isso significa, tornou externa a inadequação que era só interna. A heterogeneidade da turma, composta por alunos da PUC, da UFF e da UFRJ, me deixou mais à vontade, mas até chegar à sala sofri um bocado. Por alguns instantes imaginei como seria o dia-a-dia daqueles jovens universitários, e minha imaginação trabalhou bastante. É um tanto perturbador sair de minha realidade e viver a realidade alheia, mesmo que por curtos instantes. Walter Benjamin tomava a palavra alheia como impulso para o pensamento, então por que não posso tomar a realidade alheia como impulso para um post? Na volta para casa, no metrô lotado, outro choque de realidades - não faz parte do meu mundo me espremer em transportes coletivos, principalmente quando um anônimo qualquer, numa clara demonstração de "que se dane", resolve compartilhar a música de seu celular. Quer dizer, aquilo não era música, era um crime. Duas vozes em falsete se revezavam em letra e melodia sofríveis. Chegada minha estação, abandonei o concerto e corri para meu apartamento, reduto seguro de realidades alheias.

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Eus

9 horas. UERJ. 11o andar. Biblioteca. Iniciei o dia com estas palavras: "O homem é consciência-de-si. É consciente de si, consciente de sua realidade e de sua dignidade humanas. É nisso que difere essencialmente do animal, que não ultrapassa o nível do simples sentimento de si. O homem toma consciência de si no momento em que - pela primeira vez - diz: 'Eu'. Compreender o homem pela compreensão de sua origem é, portanto, compreender a origem do Eu revelado pela palavra." Primeiro parágrafo de Introdução à leitura de Hegel, do Alexandre Kojève. Assim iniciei meu dia, como dizia. Pensando em consciência de si, desejo, reconhecimento, luta de morte em vista de reconhecimento, dominação, sujeição, trabalho, dialética, verdade é que gastei 90 minutos de minha manhã. Pergunto: que reconhecimento busco ao escrever um diário virtual? Por que o meu diário deixou de ser secreto para vir exibir-se aqui? Que eu diz eu no blog?
10:30h. Entro na aula do Roberto Acízelo. Discutimos um texto de Vico, uma primeira contribuição para o que viria a ser chamado de estética. Precisei fazer uma coisa que não me agrada muito - saí antes do término da aula. Ok, eu sou caxias, cdf ou algo parecido, mas dificilmente saio antes do fim ou chego atrasado. Mas hoje eu saí mais cedo. Não me reconheceria não fosse um motivo mais do que justo.
13 horas. Início das comemorações do sexto aniversário de minha princesinha mais velha, mas esse eu não cabe aqui. Para esse eu não há palavra, só silêncio.

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Um pouco menos ignorante

Um ignorante. Assim me senti no início da tarde quando meu amigo Leonardo me trouxe um livro que eu não poderia deixar de ler. Com os olhos brilhando, ele me entregou Linguagens líquidas na era da mobilidade, da Lucia Santaella. Nunca ouvi falar, disse meio constrangido. Mentira, exclamou ele boquiaberto. Diante de minha confirmação, atônito, ele perguntava como eu não conhecia a maior semioticista brasileira. Encolhi os ombros, fixei os olhos no chão e me apequenei. Um momento exemplar da dívida infinita à qual seria apresentado daí a minutos na aula do Mario Bruno. Sentado na sala, fui brindado com uma aula sensacional. Num momento, porém, me inquietei. A afirmação de que a filosofia é para todos mas não é para qualquer um ecoou no meu espírito ignorante. O que será que ele quis dizer? Seria eu qualquer um? Estaria incluído dentre os excluídos? Me agarrei à primeira parte da sentença e perseverei: se a filosofia é para todos será para mim também. E foi com esse espírito determinado que obstinadamente ouvia cada palavra dita, que compreendia cada conceito explicado, e que formulava, de mim para mim, novos aforismos. O meu entendimento raso de Nietzsche ganhou corpo hoje. Ainda não sei de que é capaz esse corpo, mas ele já demonstra alguma consciência. Consciência em relação a quê é o que ainda resta saber, mas enfim consciência. Menos trágica do que se gostaria, posso senti-la como uma força ativa que, no final das contas, acaba por escapar à consciência, essencialmente reativa. Perdido nesses pensamentos, cheguei ao final da aula sem querer falar com ninguém, extasiado. De volta ao mundo ordinário, sentado contemplativo no metrô, com um sorriso no canto dos lábios, sentia-me um pouco menos ignorante...

sábado, 14 de agosto de 2010

Dois anjinhos

Agora estão dormindo. Parecem dois anjinhos. As coisas mais lindas do mundo. Mas estiveram acordadas durante o dia. Transformaram a casa num pandemônio. A promessa que fizeram, logo após o almoço, de que se comportariam e me deixariam estudar à tarde não durou cinco minutos. Trancado no escritório, tentava em vão me concentrar. Mas a concorrência era desleal. Não eram dois anjinhos. Eram duas máquinas de fazer barulho. E valiam-se de toda sorte de brinquedos para produzir ruído. Impossível me concentrar. Decidi apelar para minha autoridade paterna. Fui até o quarto - o QG onde se concentravam as traquinagens - e, sem dizer nada, lancei um olhar intimidador. Pausa no barulho. Senti-me como um general que tem domínio sobre a sua tropa. Respirei fundo, orgulhoso, e dei meia-volta, marchando de volta ao escritório. Sentado à mesa, porém, recomeçam os sons variados. Bola na parede, xilofone e flauta de brinquedos numa sinfonia surreal, a televisão gritando, reclamando atenção das desordeiras, risos, brigas e... choro. Novamente o general bate a tropa em revista, busca saber o que aconteceu. Dadas as devidas explicações, muda-se a tática. Ao invés da intimidação paterna, uma conversa, olhos nos olhos, sobre a importância da obediência. Vocês não estão proibidas de brincar, mas façam isso sem tanta algazarra, papai precisa muito ler um texto nada simples. Em vão. As crianças estavam diabólicas. Na mesa, uma xerox de "Activo e reactivo", do Deleuze. À medida que a leitura avançava (?), lembrava-me da Solange, minha professora de inglês que tenta me fazer ler na língua de Shakespeare. Fico muito cansado depois da aula porque faço um esforço hercúleo para entender isso, digo regularmente a ela. A dificuldade agora se repetia, mas em meu idioma. Acho que não tenho muita capacidade de abstração, penso lendo Deleuze. Exausto. Lá fora, no quarto, silêncio inesperado. Suspendi a respiração, como a acurar os ouvidos. Nada. Ouviria uma agulha cair no chão tranquilamente. Isso não era bom sinal. Já deveria saber que duas crianças, em silêncio, estão tramando alguma coisa. O que os olhos não veem o coração não sente, pensei, querendo me convencer de que nada acontecera. Li mais algumas linhas. A respiração ofegante. Uma gota de suor descendo pela têmpora. Não me contive. A responsabilidade paterna falou mais alto. Levantei-me. Abri a porta com cuidado. Lancei um olhar para fora. Nada vi. Dei um passo. Outro passo. Sem motivo, parecia que era eu quem estava fazendo arte e que a qualquer momento seria descoberto e posto de castigo. Percebi um rastro de objetos abandonados pelo chão em direção à cozinha. As desordeiras certamente se refugiaram por lá. Mas cozinha não é lugar de criança, raciocinei. Pé ante pé, me esgueirei para surpreendê-las. O general pegaria a tropa com as calças na mão. O silêncio persistia. O que elas estarão fazendo?, perguntava intrigado. Quando finalmente criei coragem e entrei na cozinha, supreendi minhas princesinhas sentadas com duas bonecas rodeadas por toda a sorte de doces da casa - sorvete, balas, chocolates, biscoitos. Diante da minha atonicidade, me disseram, com a maior simplicidade do mundo: - Papai, chegou bem na hora, elas se comportaram e a gente prometeu que se elas se comportassem a gente ia deixar elas comerem o que quisessem. Quer comer doce com a gente? Diante dessa explicação tão natural e tão infantil, o que fazer a não ser me sentar também no chão da cozinha e brincar de ser criança com meus anjinhos?

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

A vez do leitor

Bernardo Carvalho uma vez declarou em entrevista que a motivação para o seu romance Nove noites surgiu do anseio dos leitores por histórias baseadas em fatos reais. Pensando no anseio do leitor, o autor escreveu seu romance misturando realidade e ficção com uma dose de referências autobiográficas na construção de seu narrador, de maneira a saciar o desejo do público. Essa realidade no ambiente ficcional é apenas aparente, no entanto. A referência a Nove noites, aqui, serve para dizer que se por um lado o leitor tem papel essencial para a realização da obra, por outro, na análise do romance, ele assume função coadjuvante. A crítica, ao refletir sobre o romance, se ateve ao aspecto autoficcional, discutindo os meandros autorais na desestabilização da certeza do leitor sobre as referências autobiográficas. É acertado dizer que a estética autoficcional só encontra a sua plenitude com a aceitação do leitor no jogo de esconde, mas, mesmo assim, ele, na análise crítica da obra, fica em segundo plano - os holofotes incidiam sobre o autor.
Essa mais do que longa introdução serve para dizer que Flávio Carneiro, em seu recém-publicado O leitor fingido (Rocco, 2010), dá ao leitor o destaque merecido. Já que falei em autoficção acima, aproveito o ensejo para dizer que o retorno do autor na literatura contemporânea se dá, dentre outros motivos, pelo interesse desperto nos leitores sobre a figura autoral, não mais incógnita sob os caracteres da obra impressa. Essa curiosidade do público, no entanto, encontra contrapartida em Flávio Carneiro, interessado em saber "como será o meu leitor em carne e osso?" (p. 16). A curiosidade primeira do leitor pela pessoa que escreve agora se inverte: o escritor quer saber quem é seu leitor, mesmo porque existe um equilíbrio entre escrita e leitura. Desse modo, "é necessário recorrer sempre a uma e a outra dessas atividades, de tal modo que a composição escrita se revele um corpo construído pelas leituras efetuadas" (p. 17).
Nada mais natural, então, que o texto do escritor Flávio Carneiro apresente situações vividas e leituras feitas pelo leitor Flávio Carneiro, em uma inserção muito bem construída, na tessitura do texto crítico, do universo empírico-ficcional. Essa mistura de memória e pensamento crítico dá a O leitor fingido uma qualidade imprescindível: uma leitura agradável, prazerosa e ao mesmo tempo inteligente. Não se preocupe, Flávio, dificilmente seu livro obedecerá ao segundo mandamento da arte de não ler.
É tão claro o papel de destaque que o leitor assume para Flávio Carneiro que, em contrapartida à função autor proposta pelo francês Michel Foucault, ele propõe a função leitor, pois "o lugar daquele que lê é também um lugar de sujeito. E se esse lugar é agora um entrelugar, de onde estaria ele falando, que autoridade teria para dar significado a um texto?" (p. 43). Se não podemos dissociar escritor e leitor, se o escritor é um leitor que escreve, de acordo com definição proposta por Carneiro, criou-se uma lacuna no pensamento do francês, agora preenchida.
Pensando bem, por que será que o leitor, normalmente, não recebe a atenção devida? Ou será que sou eu que não lhe dava importância? Se pensarmos que um texto só é texto quando é lido, que antes disso ele é silêncio, nada, vazio, a importância do leitor já está aí - na significação dada ao texto. Enganado ou não, a leitura de O leitor fingido serviu para que eu refletisse não só na função leitor, mas principalmente que todo escritor é antes um leitor - afirmação óbvia, mas igualmente desapercebida, por vezes.
Durante a leitura, somos convidados a refletir que a leitura não é restrita ao universo alfabético. Lemos quadros, arquiteturas, pessoas, situações, etc. Imediatamente lembrei da minha graduação em Letras na UFF e de uma leitura que eu fizera com o objetivo de escrever uma resenha para o curso de português III. Para quem não estava interessado em aprender gramática, tínhamos como alternativa escrever resenhas de livros da coleção Princípios, da Ática. Ao ler Leitura sem palavras, da Lucrécia D'Aléssio Ferrara, o então jovem e arrogante sentiu-se compelido a dizer que leitura pressupunha letras, palavras, frases, livros enfim. Nada como leitura após leitura...

terça-feira, 10 de agosto de 2010

Frases impensadas, impactantes e inverdadeiras

Sou um cara de frases ditas sem pensar. Sempre fui assim. Não sei por quê. Mas quando me dava conta já tinha soltado uma pérola que, na maioria das vezes, pra não dizer sempre, não correspondia exatamente àquilo que eu pensava e que eu queria realmente dizer. Acho que nunca fui muito bom orador, sempre tímido, com péssima dicção herdada de meu pai. Sou um homem de poucas palavras e, apesar disso, o rei das gafes. A prudência me faz calar. Em boca fechada não entra mosca. O problema é quando resolvo falar. A fala é traiçoeira, terreno incerto, volátil, efêmero, cruel. Por isso tudo e algo mais prefiro escrever. Não que eu escreva bem, não é o caso, tenho consciência disso. Escrever é, para mim, a tarefa mais difícil do mundo. Tenho dificuldades em me expressar por escrito e oralmente. A escolha em fazer Letras deve ter sido uma escolha autopunitiva. Freud explica. Mas a vantagem do texto escrito, para mim, é que ele me dá a chance do silêncio. Antes de mostrar um texto para alguém - exercício recente neste blog -, leio, releio e treleio o que escrevi. Se finalmente opto por mostrar, estou "seguro" que nada comprometor irá me atraiçoar. É claro que essa segurança inexiste e, no final das contas, sempre me arrependo. O texto escrito, no entanto, tem um predicado mais terrível. Ele documenta o que não deveria ter sido dito. Ele é prova e eu sou réu. Como ainda não me transformei num ermitão, como ainda mantenho, a duras penas, um convívio social, e como, sadicamente, tenho propensão para as letras, aqui estou escrevendo sobre a dificuldade de escrever, de falar, de comunicar, de dizer. Eu odeio blogs! Esta foi a mais recente frase dita sem pensar, a mais recente sentença impactante que eu proferi. Infelizmente não será a última. Foi para o Carlos Eduardo que eu disse essa preciosidade, nos minutos que antecediam a aula do Roberto Acízelo. Por que eu disse isso? Primeiro porque, ao mesmo tempo que eu não gosto de falar, eu odeio o silêncio. Ele me é constrangedor. O silêncio me obriga a correr para as palavras numa atitude suicida, incontornável, definitiva. Antes de uma aula de doutorado, natural que os amigos conversem sobre suas pesquisas, eu sei. E foi aí que se criou a armadilha. Todos sabem que meu projeto é sobre blogs. Por essa razão resolvi aderir à turma dos blogueiros. Preciso me familiarizar com o computador. Com a internet. Devo dizer que se por um lado as palavras me martirizam, por outro elas me fetichizam. As palavras me fazem leitor. Leio e amo ler. Não vivo sem esse expediente. Preciso ler. A leitura é tudo para mim. Não sou daqueles eus que leem de tudo. Quando falo em leitura, falo de literatura. Ela me basta. Ela me alivia de mim mesmo. Me transporta. Me acalenta. Mas ainda não tenho um hábito constituído de leitura de blogs, meu objeto de estudo. Apenas uma dificuldade a ser vencida. Também não tinha o hábito de acordar cedo. Aí tive filhas... Não tinha o hábito de ler blogs. Aí fiz o meu. Acredito que os blogs precisam e devem ser estudados mais sistematicamente como nova ferramenta de labor e experimentação literária. Acredito também que eles possuem características importantes, do mesmo modo que um tipo de texto que nem sempre me agrada. Mas isso não faz com que eu os odeie, Carlos. Não. Não os odeio. Aquilo foi dito na sala por um eu que nunca soube se portar com a palavra. Que sempre sofreu com a força do verbo. Que desconhece a oratória. Um eu angustiado entre o silêncio e a voz, indeciso de como e de quê falar. Mas ao mesmo tempo um eu que necessita ser lido.

Continuemos, pois

O simpósio Flusser in Rio foi encerrado com chave de ouro nesta tarde. A fala do Cláudio Castro Filho - Modernidade e estética fenomenológica em Vilém Flusser - teria sido o ponto alto da tarde não fosse a roubada de cena do Gustavo Bernardo, que fechou os trabalhos. Com uma camiseta verde com um ponto de interrogação preto desenhado na frente, ele "limitou-se" a ler um texto seu previamente dado aos participantes no Caderno flusseriano, uma brochura que continha, além do texto do organizador do evento, mais cinco ensaios escritos pelos monitores, que imagino serem alunos do Gustavo.

Isso não seria nada demais, vocês hão de concordar. Por que a leitura de um texto, de conhecimento prévio dos participantes, suscitaria algum alvoroço? Não foi o texto, no entanto, que tornou o desfecho do simpósio sensacional. Foi a leitura. Em pé, com a interrogação estampada na camisa diante de todos, Gustavo mal conseguia ler, a voz embargada pela emoção, a respiração ofegante, alguns segundos mais extensos para controlar o choro iminente. Particularmente, também me emocionei, e desconfio que todos os presentes se contagiaram com a emoção do Gustavo.

Nesse momento refleti que se um evento acadêmico consegue despertar, num acadêmico, tamanha emoção, nada está perdido e podemos e devemos seguir em frente. O texto em si é um bom texto, mas insuficiente para ocasionar tal comoção em alguém que não estivesse, como o Gustavo, envolvido diretamente com a organização e com os estudos em torno de Flusser. Ele procurou escrever uma ficção para homenagear o homem-rio, que não permite "que ninguém mergulhe duas vezes nas suas palavras". A academia se mostrou hoje um espaço onde homens ainda se emocionam, ainda carregam a emoção à flor da pele, ainda se mostram vulneráveis e... humanos. Continuemos, pois.

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

A filosofia da ficção de Vilém Flusser: um tapa na cara

Organizado pelo Gustavo Bernardo, o simpósio internacional A filosofia da ficção de Vilém Flusser acontece no teatro Noel Rosa, na UERJ. Não compareci na sexta-feira, mas estive presente hoje pela manhã ouvindo com interesse crescente o que se dizia à medida que percebia que as ideias do filósofo tcheco-brasileiro me serão caras para a minha tese de doutorado, lamentando nunca ter lido sequer uma linha sua e ansioso por enfim lê-las. Quando o filólogo alemão Markus Schäffauer, da universidade de Hamburgo, em seu trabalho intitulado "Além da ficção", iniciou sua apresentação, foi, para mim, como ter levado um tapa na cara. O interesse que sentia transformou-se em estupefação, e me perguntava por onde eu andara no mestrado que nunca tinha lido nada de Flusser. Explico.

Schäffauer iniciou sua fala queixando-se dos críticos contemporâneos que se esforçam em distinguir realidade de ficção. Perguntava o alemão por que os críticos tentam obstinadamente diferenciar realidade de ficção se os próprios artistas esforçam-se por aproximá-las. E complementa, citando Flusser, afirmando que os conceitos de realidade e ficção se equivaleriam, daí a improcedência em distingui-los. Ora, na minha dissertação de mestrado gastei algumas páginas para provar que na literatura brasileira contemporânea é muito comum uma hibridização do texto fruto da mescla justamente entre realidade e ficção. Seria essa indecidibilidade do leitor em assegurar seus limites uma das marcas da autoficção. Não quero me desdizer aqui, continuo convicto do que escrevi e defendi no mestrado, mas, a partir da fala do alemão, questiono a importância que isso tem.

Talvez mais do que afirmar que, por exemplo, em Nove noites, a construção do mito do escritor, de sua invenção de si, se dá na interseção de realidade e ficção, seja mais profícuo abstermo-nos dessa discussão e partirmos para um debate em torno da "vampirização" - para utilizar um termo de Flusser - do autor hoje. Em linhas bastante sintéticas, seria a transformação de uma arte exteriorizante em uma arte interiorizante, isto é, tentar ser imortal não nas obras, mas na memória dos outros. Como disse, ainda não tenho leitura suficiente de Flusser para aprofundar essa discussão no momento, mas fica aqui uma indicação de caminho a seguir.

Desconfio que meu projeto de doutorado sofrerá algumas modificações. Já vinha me mostrando insatisfeito com a primeira parte do projeto, que visava a discussão da autoficcionalização comum nos blogs. Parece ser um tanto óbvia a construção de um alter ego nos narradores blogueiros, por isso acho que posso abstrair essa questão e partir para uma discussão mais profunda, menos dejà vu.

***

Nota confessional: Comecei o curso do Mario Bruno, como ouvinte, hoje, me sentindo um penetra da festa alheia. A minha sorte mudou ao conhecer a Catarina, minha mais nova amiga, que está na mesma situação que eu - não somos mestrandos nem doutorandos, não temos vínculo com nenhuma instituição, mas não querermos sair da brincadeira.

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Universidade: local do saber

Percebo a persistência e a insistência em se discutir a dicotomia entre a literatura como obra de arte e a literatura como componente da cultura de massa, interessada apenas na sua inserção mercadológica de modo a garantir, ao autor, dividendos lucrativos. Dessa forma, teríamos uma primeira disparidade, qual seja, o autor seria, no primeiro caso, um artista e, no segundo, um profissional. É possível, no entanto, falar em profissionalismo no terreno das artes? O artista é um profissional? Essa foi uma das questões levantadas no simpósio Pensamento teórico-crítico sobre o contemporâneo, na mesa Literatura, trabalho, pedagogia, com os professores Italo Moriconi, Ariadne Costa e Mario Cámara, durante as IX Jornadas Andinas de Literatura Latino-Americana.

Ao colocar essa questão em termos opositivos como mercado vs. academia, circulação vs. erudição, arte vs. consumo, busca-se pensar em que medida a academia estaria contribuindo para o entendimento da prática literária na contemporaneidade. Discute-se adequações de currículos e políticas de incentivo e adaptação de maneira a contemplar e aceitar a nova prática literária vigente, e cobra-se da academia que ela se posicione, preferencialmente de forma a interagir com o novo. Uma das críticas mais comuns feitas à academia diz respeito a um conservadorismo que a privaria de ler a atualidade. No debate que se seguiu à fala dos três professores na mesa citada, surge da plateia a interrogação: mas a academia deve conservar ou criar? E a resposta, prontamente, foi dada também pela plateia: As duas coisas.

A cobrança de que a academia deve acompanhar as novas e novíssimas criações literárias - e que em certa medida é uma cobrança mais do que justa - perde terreno, a meu ver, quando se esquece que ela deve também preservar o cânone. Algumas vezes tenho a impressão de que, em nome da "massa de trabalhadores do literário", que muitas vezes é sinônima de "massa de amadores", valendo-me de expressões do Italo Moriconi, ataca-se o beletrismo como forma de justificar e validar nossa produção contemporânea. É claro que devemos entender a literatura contemporânea sob a luz da crítica e da estética contemporâneas, afinal seria um enorme anacronismo estudarmos literatura hoje tendo como parâmetro, por exemplo, Machado de Assis. Isso, contudo, não deve servir como prerrogativa para "apagarmos" o bruxo do Cosme Velho, a academia, o beletrismo etc. Concordo com Flávio Carneiro quando ele diz que hoje vivemos uma "transgressão silenciosa", não precisamos mais atacar o cânone para outorgar à literatura atual reconhecimento, valor.

Para finalizar, cito novamente o Italo Moriconi, ao dizer que "o fetiche literário é um bem", "temos que aprender a gostar de Shakespeare", por que não? Um texto hoje que se queira parecer com a escrita do dramaturgo britânico ou com Machado de Assis, para dar um exemplo da nossa literatura, seria um texto ilegível, mas isso não deve invalidar nossas bibliotecas. A universidade ainda é sim um espaço destinado ao saber, e isso é muito bom! Que ela consiga conjugar a esse saber canônico as novas formas de escrita da atualidade, sejam os blogs, as autoficções, os microcontos, etc.

Fico por aqui, sem conseguir chegar perto da totalidade das questões discutidas no evento, que foi bastante rico, mas deixo o meu pitaco.