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segunda-feira, 30 de julho de 2012

A bagunça nossa do meu dia a dia

Quando eu era solteiro, era a pessoa mais desorganizada que eu conhecia. Nada tinha lugar e tudo era uma enorme bagunça. Eu justificava-me dizendo que se arrumassem minha zona eu jamais voltaria a encontrar alguma coisa, que eu me entendia na minha bagunça. Como se eu realmente encontrasse o que quer que seja... Minhas coisas simplesmente desapareciam. Como eu sempre vivia meio que no mundo da lua, dava pouca ou nenhuma importância para o caos do meu quarto. Mas um dia eu arrumei uma namorada, mulher bonita, gostosa, inteligente e... extremamente organizada. Dessas que têm toc. Um horror. A primeira vez que ela foi ao meu antigo quarto de solteiro, por muito pouco não entrou em colapso. Quando abriu meu guarda-roupa, sentou-se na cadeira da escrivaninha - que servia também como cabide -, contraiu todos os músculos do rosto, e, enquanto uma lágrima escorria pela face, exclamou, entre os dentes, "Meus Deus, o que é isso!".
Nesse exato momento, depois que ela não saiu correndo e ainda se dispôs a arrumar "aquilo", percebi que ela ou muito me amava ou que era muito doida. Hoje, transcorridos alguns bons anos, percebo claramente que sou muito amado, mas que ela é extremamente louca. A minha desorganização está para mim como a loucura está para ela. Mas, voltando ao que interessa, ela conseguiu arrumar meu guarda-roupa. Descobri que vários livros que eu achava que estavam perdidos se encontravam, na verdade, naquela espécie de terceira dimensão. Havia, claro, roupas também, muitas das quais não eram vestidas há anos, do mesmo modo que saíram de dentro do meu guarda-roupa bolsas, cadernos, walkman, discos ainda em vinil, fitas cassetes e algumas pornôs, uma televisão, um velotrol e outras coisinhas...
Enquanto ela arrumava, dobrava, reagrupava, organizava e me lançava olhares recriminatórios, eu fumava sentado no chão da parede oposta, de cabeça baixa, pensando no que eu tinha me metido. Mas aí lembrava do sexo, respirava fundo e acendia outro cigarro. O próximo passo foi a escrivaninha, que já não era mais utilizada por pura falta de serventia. Havia de tudo nela, inclusive absorventes íntimos, que eu não soube explicar o que faziam ali. Depois de um dia inteiro na "operação organização", descobri que eu tinha um quarto espaçoso, arejado, limpo e... organizado. Se eu não fosse testemunha ocular da obstinada arrumação de minha namorada, sairia pela porta com a certeza de ter entrado em um outro apartamento.
O tempo passou e a gente acabou casando - era a ratificação de sua loucura. Mas, ao invés de jurar para um padre toda aquela baboseira de "até que a morte nos separe", precisei jurar de pé junto, sobre a Bíblia, que passaria a viver mais organizadamente. E jurei. E ela acreditou.
Nos primeiros meses consegui, com ajuda de Deus - foi quando soube que Ele existia - manter as coisas em seu devido lugar. Mas só eu sei o sofrimento que era retirar alguma coisa da gaveta e depois recolocá-la na mesma gaveta. Isso ainda era melhor do que ouvir o sermão que viria depois. Lembro de uma vez que deixei, depois de beber um copo de coca-cola, o dito cujo no chão ao lado do sofá. Só faltei apanhar, após ouvir um discurso inflamado e veemente de que "todas as coisas tinham o seu devido lugar". E novamente pensava no sexo, me calava e seguia adiante.
Mas se havia descoberto a existência de Deus, descobri, após o primeiro ano, que o diabo também existia. Foi ele quem me devolveu a minha desorganização caótica. Ela ressurgiu aos poucos, com meias e tênis abandonados no meio da sala. Em seguida veio a toalha molhada sobre a cama. Os copos eram deixados onde quer que eu estivesse após o último gole. E os cinzeiros viviam embaixo de qualquer coisa. O golpe de misericórdia veio, porém, no dia em que ela ia guardar minhas roupas passadas no nosso guarda-roupa e caiu de lá um violão em cima da cabeça dela. E eu ainda reclamei da desafinação proveniente de sua desatenção. Aí ela sentou, abaixou a cabeça, respirou fundo e... pensou no sexo. Acabou desistindo de sua mania de arrumação, graças a medicamentos prescritos por nosso psiquiatra. Pois é, casal unido frequenta o mesmo psiquiatra.
Como ela, agora mais calminha por causa das tarjas pretas, parou de se preocupar com minha bagunça, a coisa ficou crônica. E cronificou-se com a melhor de minhas boas intenções. A gente conseguiu comprar um apartamento maior e aí um dos cômodos passou a ser o meu escritório. Só meu. Território que deveria ser respeitado e que concetraria a minha bagunça. Prometi, cheio de amor e de compaixão, que manteria o restante da casa em ordem. O problema é que ela respeitou o acordo e não entrava lá nem para arrumar eventualmente a desordem instalada. Em pouco tempo, a realidade do meu quarto de solteiro reapareceu. Não conseguia mais trabalhar, tampouco entrar, em meu escritório. Minha mesa de trabalho tinha de tudo e eu não me achava mais. Como sou dado a ideias brilhantes, transferi meu escritório para o nosso quarto. Nos primeiros dias, diante das reclamações exasperadas de minha mulher, eu jurava que manteria as coisas "arrumadinhas". Em pouquíssimo tempo, entretanto, ela não tinha mais espaço para deitar na cama.
Hoje, depois de vencer o toc dela com o meu caos, saio todo fim de semana para visitá-la numa clínica de repouso. E, quando penso naquele primeiro dia no meu quarto de solteiro, me convenço de que eu tinha razão: ela é realmente louca. Não fosse, estaria em casa comigo, pessoa normal e ajustada. Apenas lamento quando penso no sexo...

quinta-feira, 26 de julho de 2012

Carta aberta para minha mãe

Pois é, mãe, estou com muita saudade de você. Hoje ela bateu quando vi no Facebook - aquele negócio na internet de que você não gostava e nem queria ouvir falar - vários comentários sobre o dia dos avós. E aí pensei que minhas filhas perderam a melhor avó do mundo. Aquela que fazia todas as vontades das netas, mesmo nos contrariando. Pois é, mãe, não tive a sabedoria necessária para entender o que todo mundo sempre falou e continuará falando, que os avós servem para estragar os netos, para paparicar, para mimar e, sobretudo, para amar muito. Mas eu, chato pra caramba, acho que por ter vivido torto minha vida inteira, ficava com medo de que os excessos pudessem prejudicar minhas princesinhas no futuro. É que eu, idiota, preocupado em policiar os avós, esquecia que era a minha função não permitir que elas também entortassem - e, caso entortassem, seria por livre escolha delas, só delas. Eu continuaria aqui amando muito elas, como sempre fui amado, mesmo quando fazia as maiores merdas do mundo - e não foram poucas. Em suma, os avós deseducam para os pais continuarem a árdua tarefa de educar. E deve ser muito bom ser avó para deseducar, para só dizer sim, para, no final das contas, ser avó.
A Maria Cecília deve nascer a qualquer momento, já está tudo pronto esperando por ela. Na verdade falta só o berço, que chega por esses dias. Ela não terá o privilégio das irmãs de te conhecer, mas será a única com o teu nome. E nós não permitiremos que ela não a conheça. As suas telas continuam nas paredes, as suas fotos também e, mais do que tudo, a lembrança e o amor que todos ainda temos.
Há três dias atrás, voltando do parquinho com as crianças, a Maria Antônia lembrou muito de você. Ficou tristinha, com saudade, mas sabe como é criança, logo passou para outro assunto. A Maria Eugênia, que era mais colada contigo, evita tocar no assunto, acho que é para, de alguma maneira, evitar o contato com a dor da perda. Porque dói muito, mãe.
Mas não se preocupe, tanto a Maria Eugênia quanto a Maria Antônia estão ótimas. Lindas, bagunceiras, inteligentes, espertas, engraçadas. Suas netas, não dava pra ser diferente, né? Ah, também são teimosas... mas acho que isso puxaram mais de mim.
Elisa está doida para parir logo, não está se aguentando, coitada. Papai e Gustavo estão bem, só com muita saudade.
Agora fico me lembrando de todas as coisas que não fizemos juntos. Acho que nós dois perdemos tempo demais com coisas desimportantes e aí esquecemos as coisas que realmente importam. Nunca comemos um japonês juntos, quase nunca íamos a uma exposição juntos, para você poder me ensinar alguma coisa sobre artes plásticas... Havia tanta afinidade entre nós e a gente sempre se manteve distante, que idiotice, né? A gente podia ter tido ótimas conversas sobre literatura, artes plásticas, filosofia. A gente podia também ter falado muita besteira juntos, que é bem mais interessante. Quanta risada perdemos... A vida é tão curta e tem tanta coisa para se viver. Nunca fomos à Europa juntos, olha que absurdo!!
Mãe, vou ficando por aqui. Feliz dia dos avós para você. Te amo muito, sempre amei e sempre amarei. Desculpa pelas minhas cagadas ao longo da vida, mas... você sabe... Até breve.

quarta-feira, 25 de julho de 2012

Confissões autoperformáticas de um sujeito fraturado e ignorante

Ignorante. Débil. Parvo. Este sou eu, proprietário deste blog, que não sei por que razão você visita. Talvez você, desavisadamente, tenha clicado em um link qualquer; ou o Google, sabe-se lá o motivo, tenha elencado meu blog numa lista de assuntos de teu interesse; ou você é uma pessoa curiosa. Independente do motivo, o que importa é que você está aqui e, por isso, resolvi me apresentar. Assim, caso seja sua primeira visita, poderá sair sem grandes traumas. Sou ignorante, mas educado. A ironia reside justamente no fato de eu, apesar da minha limitação intelectual, prezar bastante assuntos e temas que fogem da minha compreensão. Acho importante a leitura de filosofia, de literatura; acredito que a arte é uma forma de expressão que nos eleva; e que ela suscita questões fundamentais para o Homem, muitas das quais discutidas e rediscutidas desde sempre.
Mas eu não me reconheço como um ignorante há muito tempo. Até me achava um cadinho inteligente, capaz de refletir sobre temas complexos, sobre os quais tinha, inclusive, boas tiradas. Sim, durante algum tempo acreditei ser uma pessoa inteligente, modestamente, acima da média. Hoje, ficaria feliz se me apresentassem como mediano. Pelo menos assim não me reconheceria como burro, ignorante, conforme apresentação inicial nesta nossa conversa.
Resolvi fazer esta confissão porque este blog chama-se Identidade de um Eu, o que significa duas coisas: primeira, por ser um blog, isto é, um diário, deve conter a minha verdade e permanecer distante da mentira; segunda, a minha identidade necessita ser preservada, nem que seja a identidade de apenas um dos eus. E é este que se confessa um parvo sem eira nem beira.
Para seguir a trilha da verdade contida neste blog, descobri-me um ignóbil quando, com a melhor das intenções, resolvi ler Mímesis: desafio ao pensamento, de Luiz Costa Lima. Livro grosso, com mais de 400 páginas, com ele eu iria adquirir um conhecimento teórico-filosófico sobre a mímesis e tudo que advém com ela. Passearia pelo conceito de mímesis desde os gregos, passando por Descartes, Kant, Heidegger, Schopenhauer, Nietzsche, Freud, Deleuze, Foucault e outros. Poderia, com esta leitura de fôlego, agregar conhecimento e ter mais subsídios para discutir questões como o sujeito, a mímesis, a verdade, a ficção, a arte, enfim. 
Mas o que deveria ser uma solução, para quem acreditava que devemos estar sempre em busca do conhecimento, se mostrou um gradessíssimo problema quando, ainda no início do livro, me deparei com a realidade - eu não conseguia compreender o que Costa Lima tentava me dizer. Percebi que não possuía leituras suficientes dos filósofos abordados pelo autor e que sua teorização se demonstrava demasiada complexa. Afinal, que caminho epistemológico eu deveria seguir, ou melhor, qual era a argumentação de Costa Lima? Em que momentos ele discordava e em quais outros ele aproximava-se dos pensadores em questão?
Mas se me descobri um ignorante, igualmente me apresentei como um obstinado. Não desisti da leitura, levei-a até o fim, sublinhando, anotando, interrogando, fraturando-me. Acho que para ser minimamente capaz de entender este livro, precisaria relê-lo, trelê-lo e, depois, fazer um curso sobre o mesmo. Mas, amigo, caso você ainda não tenha desistido deste blog e continue a ler este ignorante, saiba que o problema não é do autor, tampouco do livro. O problema é exclusivamente meu, que sou meu próprio óbice. Talvez eu não seja um caso perdido porque consegui perceber que o livro é muito bom, pena que lido por alguém muito ruim. Mas você, leitor paciente, poderá tirar ótimo proveito desta leitura. E quiçá me ajudar posteriormente. Me tirar do limbo onde me encontro agora.
Foi o próprio Costa Lima, curiosamente, quem me estendeu a mão e sorriu com benevolência mediante minha ignorância confessa. Em mais de um trecho, ele queixa-se de sua incompetência filosófica, psicanalítica e de seu amadorismo em relação às artes plásticas. Nestes momentos, perdoem-me dizer, senti um nós se justapor ao meu eu. Pelo menos por segundos, senti-me próximo do eu autoral, capaz de entendê-lo e de me solidarizar. Por frações de segundos, nossas primeiras pessoas se deram as mãos e unificaram-se. Mesmo que, no caso dele, sua incompetência servisse apenas como uma espécie de modéstia, ou de retórica. Ou, ainda, como um salvo-conduto para transitar em seara alheia.
Infelizmente, sou incapaz de resenhar este livro como ele merece, daí confessar-me um ignorante, mesmo porque a leitura deste livro "ao leitor deixa a escolha entre sentir-se fascinado ou reconhecer-se um imbecil". Aqui, desculpo-me com Costa Lima e com Foucault, mas sinto fascínio e me reconheço um imbecil. As duas coisas, por que não? Se não sou mais um sujeito uno e solar, cartesiano, e me reconheço como um sujeito fraturado, cuja "experiência estética nos faz sentir nosso próprio estado", repito aqui para você, querido leitor, que sou um ilustre ignorante, afinal, se finjo, logo existo.


domingo, 22 de julho de 2012

Febre do Rato

Uma vez um amigo meu me disse que todo filme em preto e branco era um bom filme. Não posso dizer que ele tem razão, mas Febre do Rato, longa de Claudio Assis, é extraordinário! O filme suscita no expectador atento inúmeros caminhos interpretativos, várias possibilidades de leitura. O primeiro que me ocorreu - e eu não sou tão atento assim - foi qual a importância que a poesia tem hoje em dia, se é que há alguma utilidade para ela - e aqui podemos estender esta leitura para outras manifestações artísticas. 
Considerada por muitos como uma arte elitista, para iniciados, raras vezes quem escreve poesia fora do circuito literário mais "academicista" e já inserido no mercado editorial consequirá algum público que a valide. Aparentemente, a poesia tem se restringido, porque tem perdido sua oralidade, ao mundo do livro que, naturalmente, necessita de um retorno fincanceiro para suas editoras. Mas este não é o único problema enfrentado. Para aquele que consegue romper os limites impostos pelo mercado e insere-se, bem ou mal, no mercado, outro precisa ser encarado: o da qualidade. Por ser uma arte para poucos, é como se a pergunta "quem você pensa que é para escrever poesia?" rondasse os [novos] poetas. Tenho a impressão (que pode ser equivocada) de que para ser poeta é necessário pertencer a um clube seleto.
Em evento recente organizado por Ítalo Moriconi na UERJ, um poeta perguntou quem lê sua poesia se motoristas de ônibus não a leem. Para ele, num país de iletrados, a poesia circularia entre a crítica especializada e a Academia, com alguns poucos "membros" admitidos no "clube" - estes sim deveriam ler sua poesia e, assim, proporcionar um diálogo e uma divulgação. Bem, em Febre do Rato, o poeta que declama oralmente sua arte advém de um local de onde menos se esperaria a presença de um poeta, de acordo com a ideia equivocada dela ser uma arte para poucos e de que não é qualquer um que a compreende. E aí me veio a segunda pergunta, ainda no cinema: para gostar de poesia é necessário compreendê-la? Valendo-me de minha experiência pessoal, asseguro que não entendo nada de cinema, mas fui capaz de sair da sala de exibição ontem com a certeza de ter assistido a um filme muito bom. Do mesmo modo que pouco - para não dizer nada - entendo de artes plásticas ou de música, mas isso não me impede de apreciá-las. Ainda na faculdade de Letras, um professor me disse que era possível escrever um livro inteiro com base em um único poema. Sim, podemos. Mas para se gostar de poesia é premissa que haja um conhecimento erudito que a esclareça? Por que a arte precisa ser explicada? E explicada para quem? Por quem? 
E aí me veio a questão principal suscitada pelo filme. Como então pensar o sujeito que escreve poesia hoje? E o que a lê? Ou a ouve, mesmo sem compreendê-la, apreciando-a? Uma alternativa, que é bastante restrita, seria apenas considerar que, mediante a dificuldade de fazer parte do "circuito", o poeta procuraria outros meios de divulgar seu trabalho, seja na internet, seja oralmente, seja nas ruas em pequenos e artesanais periódicos. Sim, isso é possível e acontece, principalmente se considerarmos os blogs, mas ainda não equaciona o problema.
Sentado no cinema, me veio à cabeça, ainda durante a exibição, que o filme tratava do sujeito fraturado conceituado por Costa Lima, em Mímesis: desafio ao pensamento. Uma cena, dentre várias, que problematiza a impossibilidade do sujeito hoje se representar, é a cena em que Eneida xeroca várias partes de seu corpo e, posteriormente, monta, com os fragmentos, um outro eu, uma representação, nem por isso menos "verdadeira". A Eneida é, inclusive, sob meu ponto de vista, uma personagem-chave, na medida em que ela é a primeira pessoa a não aceitar a poesia do poeta. Até então, sua poesia era lida, ouvida, distribuída e, sobretudo, aceita no espaço de sua circulação. Considerando que o sujeito, hoje, precisa do receptor para se constituir enquanto tal, a partir do momento que Eneida rejeita a poesia ela rejeita concomitantemente o sujeito poeta, que passa a não mais se reconhecer e a não mais ser reconhecido pelos demais personagens. Inicia-se uma busca para que o poeta encontre em Eneida uma resposta para si próprio. Mas, mesmo que a jovem Eneida se rendesse aos encantos do poeta e, principalmente, à sua arte, isso poderia atribuir-lhe um eu, não "o" eu. Mimeticamente, não somos mais únicos, cartesianos; somos muitos, plurais. A teorização de Costa Lima sobre a mímesis é por demais complexa para ser aqui mais bem aprofundada, por isso utilizo suas palavras: "O sujeito fraturado é não só um sujeito que não unifica e comanda suas representações senão que é visto no exercício de sua dupla função: apresenta e recebe; produz e suplementa". Ou, mais à frente: "Assim, o sujeito fraturado implica o lançar-se apresentativo, que, por não poder se cumprir sem a apresentação de quem se lança, traz consigo uma marca ou mancha de representação".
Outra característica importante que o filme apresenta é que o poeta traz consigo uma anarquia que deveria ser imanente à obra de arte. Que ela também frequente a Academia, mas a ultrapasse, atinja horizontes mais largos e extensos, públicos vários. Achei bastante interessante, já no fim do filme, a manifestação feita no dia da independência, afinal, o sujeito não é mais nacional, como o era. Não dá mais para pensar a poesia - ou a arte em geral - com padrões nacionalistas, em busca de uma unidade nacional não mais existente, pelo menos a meu ver.
Uma última observação, para finalizar: bastante atenção aos versos declamados pelo poeta e às falas em geral e bom filme. 

sábado, 14 de julho de 2012

História da vida banal - parte I

Bem, pertenço ao gênero masculino. Gosto de futebol, de mulher, de ver televisão. Gosto de conversa de botequim, de pornografia e de falar besteira. Mas também sou sensível. Até de poesia eu gosto, e aprecio, de um modo geral, manifestações artísticas. Chego a sentir algumas caracterísitcas próprias de minha mulher, que está grávida de novo. Ela não acredita em mim, acha que estou debochando, mas contra fatos não há argumentos - é como se eu estivesse grávido também -, a psicologia me entende e me apoia. Sou um ótimo pai e o melhor marido que eu consigo ser - ajudo nas tarefas domésticas, dou importância ao bem-estar coletivo etc. etc. Para resumir esta minha carta de apresentação, sou, confesso, um ogro, mas um ogro com um acento não tão agudo. Mas, ainda assim, um ogro.
O parágrafo acima foi sugerido pelo meu advogado, de modo a me contextualizar perante o tribunal e a facilitar minha absolvição. Ontem, depois que as crianças dormiram e eu, ogramente, me vi a sós no quarto com minha mulher, cheio de más intenções na cabeça, ela me faz a [fatal] pergunta: "Você não reparou em nada não?" Nesse momento um frio correu pela minha espinha, tentei controlar a respiração, agir naturalmente, vasculhando as gavetas do meu cérebro onde deveria estar registrada alguma coisa nova que eu deveria ter percebido. Já nervoso, gaguejando, enquanto ela, em pé, me encarava com ódio nos olhos, impaciente com minha hesitação, arrisquei.
- Suas unhas estão lindas, você achou que eu não ia perceber? Mas sempre que pensava em falar a respeito alguma coisa acontecia, o telefone tocava, desviava minha atenção e acabei esquecendo.
- Gostou mesmo da cor?
- Claro! Estão lindas, super bem feitas!
Considerando-me um ogro, enunciar essas frases verossimilmente faz de mim um concorrente ao Oscar.
Por uma fração de segundo, respirei aliviado e voltei aos meus pensamentos impudicos. Foi quando ela, ainda de pé, ainda me olhando com ódio e menosprezo, disparou:
- Mais nada?
Tive, então, um acesso de tosse nervosa, levantei, fui ao banheiro, à cozinha em busca de um copo d'água, tentando, a qualquer custo, ver nela alguma coisa diferente. Desisti. Me despedindo da noite de luxúria que eu havia planejado, confessei:
- Não, a-amor, não re-reparei em mais nada...
- Pois eu cortei o cabelo e você não faz nenhum comentário!!!!!
Puta que pariu! Um homem, por mais ogro que seja, tem que distinguir um cabelo pré e pós salão de beleza, não tem jeito. E isso é dito inclusive por médicos que prezam pela saúde de seus pacientes. Noite perdida, chutei o balde.
- E o que tem de diferente nele?
- Aqui do lado ele está em camadas, aqui atrás ele tirou o volume, na frente...
Juro por Deus, ou por qualquer outra coisa de maior relevância, aqui perante o tribunal, que eu não percebi diferença nenhuma. Quando eu vou ao barbeiro - nós homens não vamos ao salão -, digo curto e grosso: "Passa a máquina". Simples, prático e rápido. Para que minha mulher exigisse de mim a visualização de alguma diferença, ela teria que voltar careca!! Agora, perceber camadas laterais e perda de volume atrás? Fala sério! Argumentei, me desculpei, disse que ela tinha toda a razão do mundo, que eu era um merda de homem, que ela estava linda. Gastei todo o meu repertório, mas de nada adiantou. Em um minuto saía do quarto com meu travesseiro e um lençol na mão em direção ao sofá.

quinta-feira, 12 de julho de 2012

Minhas confissões circulares

Fui presenteado com meu primeiro diário aos 8 anos de idade, mais ou menos. Minha mãe me dera um depois que eu, através de seu exemplo, me entusiasmei em escrever também. Desde sempre minha mãe habituou-se a escrever sua vida, seus pensamentos, suas angústias e alegrias. E os escrevia à caneta, à moda antiga. E ai de quem pensasse em se aproximar deles para uma espiadinha. Seus escritos eram secretíssimos, e, sempre que eu pedia para lê-los, ela me dizia que somente após sua morte. Ela confiava ao diário, enfim, aquilo que não podia ser dividido com ninguém. E foi mais ou menos isso que ela me disse quando me deu meu primeiro diário. Mas o que eu entendi foi que aquela agenda servia para que eu enumerasse minhas atividades cotidianas. E assim comecei a relacioná-las: "Brinquei. Fui para a escola. Fiz dever de casa. Vi televisão". No dia seguinte, sem grandes variações, registrava a mesma coisa. Após uma semana, desisti do empreendimento e abandonei o diário, ainda sem entender quanta coisa minha mãe escrevia.
Muitos anos depois, no meu segundo ano de mestrado, decidi criar um diário acadêmico, que se preocuparia com minhas atividades acadêmicas, ligadas direta ou indiretamente ao meu projeto. Mas o escrevia no computador, muito mais rápido e prático. Mas, diferentemente de minha mãe, tinha a intenção de publicá-lo. Quando disse isso a minha amiga Mariá, ela deu um muxoxo e comentou que ninguém se interessaria em ler sobre tais atividades; se eu quisesse leitores, deveria escrever sobre minha vida sexual. Refleti e ponderei que ela tinha razão, mas, como sou teimoso, dei prosseguimento ao meu diário acadêmico - ainda inédito, pois não encontro nem tempo nem entusiasmo para trabalhar em cima dele e torná-lo atrativo o suficiente para uma possível edição. Mesmo porque Mariá deve ter razão...
Defendido o mestrado, meu diário virtualizou-se e transformou-se neste blog. E aqui procuro registrar, diletantemente, minhas atividades culturais, sejam elas quais forem. Procuro exercitar, dessa forma, minha escrita. Escrevo, portanto, resenhas de livros que li, de filmes, peças ou qualquer outro evento que assisti, além de colocar algum texto meu com veleidades literárias, seja em prosa ou em verso. Acho que não preciso dizer o óbvio, que senti uma grande diferença entre escrever um diário para mim mesmo, sem leitores, e escrever aqui na internet, onde sei lá quem irá ler e, (!) comentar. Mas mesmo assim vim vindo até o dia em que me dei conta de que havia coisas sobre as quais eu não tinha nada o que dizer. Às vezes assistia a um filme que, por mais que eu tivesse gostado, não me suscitava nenhum tipo de interesse em transformar aquela vivência em texto. Acontece que sou por demais metódico e, então, deveria solucionar o impasse. Assim, em outubro de 2010, criei meu twitter, que registraria os casos de mutismo, por assim dizer. Colocava lá o que tinha feito, sem desenvolver, porém. Há quase dois anos que blog e twitter convivem harmonicamente.
Obedecendo a um critério puramente cronológico, devo dizer que em outubro de 2011 criei um outro blog, ao qual não dou nenhuma importância, espécie de filho bastardo, e que, recentemente, me rendi ao facebook, aliando-me à multidão que diariamente atualiza sua rotina - ou inventa uma, tanto faz. Mas o que importa e é o motivo deste post é que hoje aconteceu um episódio interessantíssimo, pelo menos para mim, que não pode ser compartilhado com ninguém. E eis que meu eu metódico, inconformado com o silêncio, aflito com o segredo, lembrou-se do diário. Sim! Por que não? Posso voltar ao diário e anotar o que eu quiser, secretamente, sem que ninguém leia, compartilhe ou curta. Me pergunto por que maldita razão precisei escrever essas minhas confissões circulares para dizer que iniciei com um diário e talvez a ele eu retorne. Para constatar que há coisas que interessam somente a mim, à minha individualidade, ao meu eu. Mas eu sou muitos e, assim, não poderia ser nós? E sendo nós seria justo manter só comigo o segredo? Vou pensar no assunto e decidir se vamos nos interessar.

terça-feira, 10 de julho de 2012

A partir de Sobre o declínio da "sinceridade"

As questões referentes à primeira pessoa sempre se mostraram controversas. Há aqueles que não consideram um texto autobiográfico literatura por serem textos referenciais, demasiadamente vinculados à "realidade"; por outro lado há os defensores da qualidade literária das escritas de si, independentemente de sua relação estreita ou não com dados empíricos. Alheio à polêmica e interessado numa pesquisa sobre a história da sinceridade, Walter Benjamin certa vez propôs a Horkheimer um estudo comparativo entre as Confissões de Rousseau e o Diário de Gide. A diferença entre os dois tipos de texto - uma autobiografia e um diário - não se mostraria um empecilho, num primeiro momento, pois ambos, em maior ou menor grau, explicitariam a subjetividades e a sinceridade de seus autores. E é este o ponto de partida para o excelente estudo de Carla Milani Damião, Sobre o declínio da "sinceridade": filosofia e autobiografia de Jean-Jacques Rousseau a Walter Benjamin. A autora não se preocupou em polemizar tratar-se ou não de literatura os escritos autobiográficos, mas preferiu trabalhá-los sob à luz filosófico-literária. Iniciou, portanto, seu trabalho com a reflexão à qual se propôs Benjamin, que não pôde levá-la a cabo, pois em 1940, um ano depois do convite feito a Horkheimer, se suicidou para fugir da perseguição nazista.
Para Rousseau, que escreveu suas Confissões de maneira a expurgar seus pecados e buscava, também, um reconhecimento póstumo, a verdade tinha mais a ver com os seus sentimentos, e não necessariamente com os fatos. Segundo ele, "mentir sem proveito nem prejuízo para si nem para outrem não é mentir: não é mentira, é ficção". A questão que envolve o caráter ficcional de um texto, seja ele qual for, é igualmente polêmica ainda hoje e sobre a qual a autora não se detém, mas existiria alguma autobiografia que fosse de fato fiel à vida do autobiógrafo, sem flertar com a ficção? Em todo caso, Carla Milani lembra que sinceridade e obra literária já foram consideradas inseparáveis.
A questão em torno da ficcionalidade de um diário ou autobiografia, se é possível o sujeito manter-se sincero enquanto escreve sobre si, pode ser mais bem pensada ao se analisar os diários de Gide. Isso porque ele mantinha vários diários, sobre variados temas - viagens, a respeito de suas obras, sobre a Segunda Grande Guerra. Escreve a autora: "Em suas obras, os próprios personagens possuem diários e algumas narrativas são construídas com base no diário das personagens. Nessa prática da escrita de múltiplos diários, o interessante é notar que não são obras publicadas postumamente, como costumam ser os diários, mas faziam parte da relação de Gide com o leitor, amigos e inimigos". Neste caso, sua prática diarista de alguma maneira se confundia com sua literatura, dificultando a crença numa sinceridade neles contida. Além do mais, os diversos diários sobre assuntos plurais nos remete para um sujeito que há muito não é mais uno, explicitando a fragmentação do sujeito moderno em vários eus. 
E serão múltiplos eus que serão trabalhados em seu segundo capítulo dedicado a Ecce homo, de Nietzsche, que seria uma genealogia do próprio filósofo. Mas em que sentido? Para Nietzsche, todo texto filosófico também é um texto autobiográfico. Se assim é, como pensar exclusivamente Ecce homo como sua autobiografia, sem o diálogo com sua produção antecedente? Carla Milani Damião considera Ecce homo não como uma autobiografia, mas como uma antiautobiografia, no sentido de que o imodesto Nietzsche trafegaria na contramão da modéstia apregoada por aqueles que se dedicaram a escrever sobre si.
Como a autora se predispôs a um trabalho filosófico-literário, não poderia ficar de fora de seu livro uma análise de Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust. Benjamin já dizia que toda grande obra ou inaugura um novo momento ou o ultrapassa. E parece ser unânime a consideração de que esta volumosa obra de Proust é um destes casos. Quem diz "eu" neste texto? Trata-se de um romance? Uma autobiografia? Memórias? Se admitirmos se tratar de uma autobiografia, como confiar na memória do narrador? E esta memória seria suficiente para assegurar sua sinceridade? Inúmeras outras questões poderiam se somar a estas. Para Proust, falar de si deveria corresponder a falar de nós, daí o narrador Marcel que aparece Em busca... não ser necessariamente o autor, mas "qualquer" Marcel. Assim, Proust transcende o eu empírico e o eleva a uma categoria universal, mesmo porque, para ele, Em busca... é um romance.
Este percurso feito por Carla Milani Damião encerra-se com chave de ouro na última análise de seu livro: Infância berlinense por volta de 1900, de Walter Benjamin. Como o autor de estudos paradigmáticos em torno do narrador, preocupado em diferençar experiência de vivência, se comportará ao escrever a sua própria autobiografia? Segundo a autora, trata-se de um antissubjetivismo de Benjamin justamente porque para ele o sujeito é coletivo na história, não individual. Com raízes no materialismo histórico, a sinceridade só poderia aparecer com a plenitude da experiência. E, para Benjamin, vivemos na era da ausência do intercâmbio de experiências. Infância berlinense... também seria uma antiautobiografia porque, segundo a autora, há a retirada consciente do sujeito do foco narrativo. Em suas palavras, "o pressuposto de Benjamin de expor, antes de tudo, um sujeito histórico e não a história de um indivíduo demonstra que sua estratégia era ter como meta Berlim e o século XIX, e não constituir a identidade de um outro como a criança Walter Benjamin".
É óbvio que, por mais que seja amplo, desenvolvido e fundamentado este excelente livro de Carla Milani Damião, ele não esgota a questão da sinceridade, da subjetividade e da identidade. Lendo-o, me ocorreu que os blogs constituem-se em excelente corpus para um estudo a este respeito. Não tenho interesse em afirmar, como afirmou em entrevista ao jornal Rascunho, recentemente, Fernando Monteiro, que os blogs seriam um desserviço literário, sem nada a dizer. Conheço vários blogs muito bons, com conteúdo - certamente não é o caso do meu, sou apenas um diletante. Mas parece-me que, para além da questão, a meu ver infantil e improfícua, de que os blogs são isso e aquilo, nada acrescentam etc., que deve haver um estudo em torno da questão da individualidade e da subjetividade que se apresentam com o novo (nem mais tão novo assim) canal que se abriu para o exercício literário.

domingo, 8 de julho de 2012

Crônica de um Pai de Terceira Viagem III

No consultório do Dr. Isaac Nepomuceno Insanus:

- Olá, meu jovem, quanto tempo!
- Estou mal, sucumbi.
- O que houve?
- Não dei conta.
- Desenvolva...
- O senhor sabe... duas crianças, ou melhor, duas pestes, uma mulher grávida, quer dizer, louca, e a perspectiva das coisas se agravarem quando a terceira peste nascer.
- Hum...
- Hum? É tudo isso que o senhor tem a dizer? Estou a base de ansiolíticos, e nem com eles consigo mais dormir.
- Como vai o trabalho?
- Pois é, não aguento mais minha tripla jornada! Não dá mais para trabalhar, cuidar de duas pestes e ainda bancar o psiquiatra de uma grávida cujos hormônios estão na Disneilândia. Isso quando ainda não preciso assumir as tarefas domésticas, lavar, passar, etc.
- Entendo...
- Ok, o senhor entende e? Vim em busca de socorro, preciso de soluções, não de compreensão. Estou a ponto de transpor a fronteira, enlouquecer definitivamente.
- O que tem feito de lazer?
- O que é isso mesmo?
- Aí está, meu jovem! Você não pode colocar-se nessa rotina estressante e não usufruir de um minuto sequer de lazer.
- Tá, mas o que eu faço?
- Em primeiro lugar, retome seus prazeres lúdicos, vá mais ao cinema, teatro, enfim, as coisas que você gosta de fazer e sempre fez. Dê um tempo para você mesmo. Vá jogar bola com os amigos.
- E as crianças?
- Ora, meu rapaz! Quando estiver com as crianças, junte-se a elas na bagunça. Não tente ser um pai chato que só diz não. Imponha limites, mas, na maior parte do tempo, seja criança junto com elas, vai te fazer muito bem.
- Sério?
- Seriíssimo. Dê vazão para a sua criança interior, brinque com elas, esqueça um pouco as responsabilidades.
- Ok. Mas e quanto àquela louca barriguda lá de casa?
- Nesse caso o buraco é mais embaixo.
- Vai dizer isso pra mim??
- Quanto tempo falta para a bebê nascer?
- Pouco mais de um mês.
- Façamos o seguinte: concorde com tudo o que ela disser...
- Mas, Dr. Insanus...
- ... afinal, com loucos costumamos sempre concordar, não é mesmo, meu jovem [e uma gargalhada se fez ouvir no consultório, depois da qual precisei concordar].
- Isso vai resolver meu problema?
- Só isso não. Leve-a para sair também. Haverá aqueles momentos que serão só seus, mas acrescente alguns momentos para o casal, e, se os hormônios se manifestarem, faça a mesma coisa.
- O quê?
- Alie-se. Se não podemos vencê-los, juntamo-nos a eles [mais risos].
- Como assim?
- Comporte-se igualmente, como um louco desequilibrado e perigoso.
- Isso vai funcionar?
- Acabou seu tempo, meu jovem, volte mês que vem com boas notícias.
- [!]