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quinta-feira, 14 de setembro de 2017

A morte?
Coisa séria.
Mas desejo morrer cingindo 
nada
com sorriso cético
e
olhos de cigana oblíqua,
dissimulada

terça-feira, 12 de setembro de 2017

A filha do escritor, de Gustavo Bernardo


Uma mulher linda e jovem chega à Casa Verde, hospital psiquiátrico de Itaguaí, e solicita abrigo no estabelecimento enquanto aguarda a chegada de seu pai, ninguém menos que Machado de Assis. O médico que a atende, ciente de que o escritor jamais tivera filhos e falecido há mais de cem anos, prontamente diagnostica um quadro esquizofrênico para Lívia, nome com o qual a pretensa herdeira de Machado se apresenta. A brevíssima sinopse certamente é suficiente para despertar no leitor o desejo de ler esse romance de Gustavo Bernardo para descobrir quem é a filha ausente de todas as biografias do bruxo. Ou seria a paternidade mais uma de suas bruxarias?
Narrado em primeira pessoa pelo doutor Joaquim, psiquiatra da Casa Verde, que se sente perturbado com a presença de Lívia, o romance de Gustavo Bernardo, de início, apresenta coincidências inquietantes, a começar pela homonímia entre o Bruxo do Cosme Velho e o narrador-psiquiatra (ambos chamam-se Joaquim), pela arquitetura idêntica da Casa Verde ficcional construída a mando de Simão Bacamarte e a Casa Verde "real" onde trabalha o alienista contemporâneo, ambos residentes em Itaguaí, sem falar na gagueira de Joaquim, que todos sabemos ser um traço idiossincrático do próprio Machado. As coincidências não param aí. Em diálogo com o doutor Joaquim, Lívia afirma que é mãe de Luís e que nascera em 1872, o que a aproxima da protagonista do romance de estreia de Machado, Ressurreição. Leitor apenas de textos científicos, como o próprio Simão Bacamarte, "o maior dos médicos do Brasil, de Portugal e das Espanhas", o doutor Joaquim confessa que mal lera Dom Casmurro nos tempos de escola, leitura obrigatória e feita aos saltos. 
Toda a obra de Machado de Assis deve ser lida para além da "superficialidade" do enredo, uma vez que suas linhas aprofundam questões complexas e que merecem atenção. Nesse sentido, Gustavo Bernardo, que além de ficcionista é professor e pesquisador de literatura, caminha na mesma direção, ou seja, seu romance requer atenção para questões presentes nos subterrâneos do enredo e que ultrapassam o interesse primeiro apenas pela "historinha" que o narrador nos conta. 
A certeza que Lívia tem de ser filha de Machado e proveniente do século XIX, estranhando os homens do século atual dispensarem os chapéus de suas indumentárias e confusa com os bondes que se movimentam sem tração animal e sem trilhos, mais que indiciar o deslocamento temporal da personagem, evidencia a força e o vigor da literatura, aqui, em especial, a de Machado: Lívia abandona as páginas do romance machadiano e adquire vida. A ficção anima-se, o que corrobora seu poder e vigor. E isso porque não falamos dos romances mais aclamados de Machado, mas sim daquele do romancista neófito. Independentemente se considerado ou não como um dos melhores da lavra de Machado, uma vez inscrita nas páginas de obra de ficção torna-se verdadeira, real. Talvez possa-se contra-argumentar que é uma realidade ilusória, haja vista Lívia ser esquizofrênica, ou seja, sua identidade seria tão-somente fruto de sua desfuncionalidade cerebral, mental, quiçá mera imaginação. A esse respeito, afirma o narrador, no final do romance e em momento de linda reviravolta: "Concedo que a minha imaginação doentia é fértil, mas nem ela seria capaz de inventar uma mulher tão bonita e ao mesmo tempo tão sensível". Nesse momento, a suspeita do doutor Joaquim de que Lívia fosse uma professora de literatura ou mesmo aluna de pós-graduação, dado o conhecimento que possui da vida e obra de Machado de Assis, assume-se verdadeira, mas sob novo ponto de vista. Corre lá e lê o romance, obediente leitor. Tal qual Simão Bacamarte encerra "O Alienista" enclausurando-se a si próprio na Casa Verde, subvertendo o paradigma da insânia, doutor Joaquim também encerra o romance louco. A respeito da literatura de Machado de Assis, afirma o louco doutor Joaquim: "Eu também não o tinha lido até conhecer Lívia, o que é mais uma prova de que Lívia existe sim e ainda deve estar viva, viva e com os seus olhos profundamente abertos mas apagados, olhos que olham para a escuridão do aposento secreto em que a esconderam e a encarceraram". Talvez o que queira nos dizer Gustavo Bernardo, ou o narrador, ou a ficção, é que devemos compreender "as passagens sutis que existem entre o campo dos sujeitos imaginários e o campo dos sujeitos reais". Seria possível afirmarmos que somos imaginários porque antes somos reais ou vice-versa? Lívia tem de ter existido realmente, seja porque é personagem de Machado de Assis, seja porque o é de Gustavo Bernardo. Num ou noutro caso a ficção confere vida e existência a entes imaginários, provando o seu poder. Doutor Joaquim ratifica isso ao afirmar: "sacrifiquei minha paciente, sacrifiquei minha vida, tudo por causa de um amigo imaginário que é um escritor negro que morreu há pelo menos cem anos. Eu preferia ser menos inteligente a ter encontrado esse neguinho, esse gaguinho na minha frente". Desde quando Machado é imaginário? Desde quando não é? Eis a questão.
A filha do escritor formalmente também faz jus ao grande homenageado: Machado de Assis. Todos sabemos do diálogo estabelecido com o leitor na prosa do bruxo, e aqui Gustavo Bernardo adota procedimento semelhante. Ao longo de todo o romance, doutor Joaquim dirige-se a um interlocutor sem voz, que em mais de um momento levanta a suspeita de ser este o próprio leitor, principalmente por causa da forma inclemente com que trata seu outro. Não afirmo que Gustavo Bernardo consiga utilizar o mesmo tom empregado por Machado, íntimo de seu leitor e, por isso mesmo, alcunhando-o com adjetivos nada lisonjeiros, até mesmo porque Machado é inigualável. O diálogo com um possível leitor, no entanto, merece créditos. Ao final do romance, tomamos ciência de que o narrador fala sim com um outro, mas é consigo mesmo, um outro imaginário, pois é ele o louco, o esquizofrênico. Diria Quincas Borba que o humanitismo é o mesmo homem repartido por todos os homens...
Gustavo Bernardo rende um tributo a Machado de Assis e a sua literatura. A amizade que doutor Joaquim diz nutrir pelo "neguinho" e "gaguinho", que o fez sacrificar sua vida, pode ser lida e entendida, sob certo ângulo, autoficcionalmente, no sentido de que o romancista também é professor de literatura e estudioso da obra do bruxo. Mas você tem razão, leitor abelhudo, talvez essa singularidade seja pouco para falarmos em autoficção, muito embora esse dado biográfico não possa ser desprezado. O que se afirma com certeza é que a vida acadêmica de Gustavo Bernardo não diminui sua veia romancista, tampouco esta está atrelada àquela. A ficção é tudo.

quarta-feira, 14 de junho de 2017

Nem a morte me quis
preferiu a sorte
de encontrar alguém
menos infeliz

Eu deveria ter arte
mas sequer sou aprendiz

domingo, 23 de abril de 2017

Para Lennon e McCartney: os Beatles e o Clube da Esquina


O tempo, o mesmo: início da década de 1960. Em Liverpool, jovens ingleses iniciam aquela que se consolidou como uma das bandas mais importantes da história da música pop, importante ainda hoje e alcançando novos e jovens admiradores. A influência dos Beatles é incontestável e sem limites geográficos, ecoando nas distantes minas gerais, onde garotos se reuniam para jogar bola de manhã e tocar violão ao anoitecer, grupo de amigos e parceiros que constituiriam o Clube da Esquina, referência da Música Popular Brasileira, cuja excelência e composições se inspiraram, também, no expoente do rock britânico, sem contudo, limitar-se a eles. Jazz, Bossa Nova e música folclórica e erudita formavam o manancial sonoro dos mineiros. Acrescidos, agora também, da novidade inglesa. As referências dos Beatles evidenciam-se em versos e canções, algumas menos evidentes e outras mais explícitas.
O tempo é outro, foge à cronologia linear do calendário. As poéticas divergentes dos meninos de Liverpool e dos garotos das minas gerais denotam exatamente isso. Talvez o espaço em que ambos os grupos viviam colaborem para a modificação operada via música, via canção, via arte. Sempre plural. Periféricos e, por que não, antropofágicos, os instrumentistas, compositores e arranjadores do Clube da Esquina mastigaram as diversas influências e as devolveram de modo autoral, genuíno, outro, novo. É possível afirmar que o Clube da Esquina, mais que um grupo com ideias sonoras afins, individualizou-se e caminhou, parte do todo, como singularidades, isto é, irrestritos a uma única assinatura. Bituca, Lô Borges, Beto Guedes, Flávio Venturini, Toninho Horta e tantos outros trilharam seus caminhos autorais, muito embora em diálogo constante, talvez em acordo estético, paradoxo das empreitadas individuais a partir do ponto de partida comum, em uma retroalimentação musical. As parcerias comprovam um pé no Clube e outro na caminhada autoral e singular.
O tempo é sempre presente. É desse tempo que falamos quando tratamos de arte. Para Adorno, apenas a arte está no presente. Conjuga-se ao agora da arte, a releitura que Deco Fiori, Dudu Baratz, Eduardo Braga, Sérgio Sansão, Dudu Viana e Victor Bertrami fazem tanto dos Beatles quanto do Clube da Esquina, em cartaz no Parque das Ruínas, em Santa Tereza. Mais que isso, os multi-instrumentistas congregam para o espetáculo, em arranjos extraordinários, dois momentos singulares da música popular, atualizando, ou transformando, as músicas dos ingleses e as dos mineiros. É com Para Lennon e McCartney, canção composta por Fernando Brant, Márcio Borges e Lô Borges, que os músicos de primeiro time rendem tributo ao Clube da Esquina, com arranjos que presentificam aquele tempo distante dos anos 1960, agora novamente muito atuais, presenteado o público que compareceu ontem na estreia. A qualidade dos músicos, do repertório e do encadeamento das canções -- não é demais reforçar a feliz surpresa que os arranjos causam -- recebe imediato júbilo no público, insatisfeito apenas com um único bis, pois havia espaço e desejo para muito mais. 
O tempo é eterno, na arte. A estreia do show em Santa Tereza, que assemelha-se, geograficamente, às minas gerais, espaço elevado no litorâneo Rio de Janeiro, restitui, de certa forma, o ponto de encontro dos meninos do Clube da Esquina. O espaço exíguo do teatro do Parque da Ruínas também colabora para a familiaridade dos então vizinhos nas ruas de Minas. Espaço este que já demonstrou, com a superlotação e a ótima acolhida do público, a emergência de casas maiores para receber a grandiosidade do show. Há muita gente ainda a aplaudir a apresentação dos Músicos (com letra maiúscula) que estão em cartaz no Parque das Ruínas neste e no próximo fim de semana, às 19h30. As ruínas que o tempo pretérito do início dos Beatles e do Clube da Esquina podem indiciar, sobretudo na sociedade efêmera na qual vivemos, são edificadas nos acordes, nos arranjos e nas vozes que atualizam e presentificam a arte musical de dois importantes grupos da música popular. Melhor espaço para a estreia de show tão bom não poderia haver. Torço para que este seja apenas o início de uma turnê certamente vitoriosa. 
Convite feito, refestelecem-se. No tempo agora.

sexta-feira, 21 de abril de 2017

A literatura como arquivo da ditadura brasileira, de Eurídice Figueiredo


A literatura, como a arte em geral, serve, dentre outras coisas, para transformar a realidade. Em muitos casos, para perpetuar a memória e manter vivos momentos importantes da história do país. Somente a anamnese, via ficção, é capaz de reviver e tornar verossímil aquilo que, para a realidade, é absurdo. Muitos são os romances da literatura brasileira que tematizam e eternizam os anos agônicos de repressão, tortura, exílio e morte daqueles que se opuseram ao regime militar. Apesar de, historicamente, ser muito recente o término da ditadura e a conquista da democracia, parece permanecer olvido o período dos anos de chumbo que o país atravessou. As recentes manifestações populares de intervenção militar e o crescente índice de aceitação de Jair Bolsonaro para assumir a presidência do país, via sufrágio universal (!), indicam que pouco se sabe sobre os anos em que os militares estiveram no poder. Particularmente, prefiro acreditar em ignorância do que em ideologia consciente dos partidários da ditadura.
Eurídice Figueiredo, em seu A literatura como arquivo da ditadura brasileira, elenca e analisa um bom número de romances que tratam desse período, separando-os em três períodos distintos: de 1964 a 1979, de 1979 a 2000 e, finalmente, de 2000 a 2016. Suas análises são concisas e cirúrgicas, mapeando a relativa pouca produção literária sobre a ditadura militar brasileira. Dentre os escritores contemporâneos, a hipótese da ausência de mais textos, autobiográficos ou não, sobre nossa história recente é atribuída à falta da vivência daquele período, o que explica por um lado, mas alarma por outro, pois, com a lei da anistia, nos abstivemos de investigar e condenar os criminosos responsáveis pela desumanidade da tortura e da morte de muitos brasileiros, além de denunciar o pouco ou nenhum contato com a história recente brasileira. A literatura, apesar de escassa sobre essa temática, tem papel fundamental para avivar os horrores por que muitos passaram, em maior ou menor grau de sofrimento.
Antes de analisar os romances, Eurídice Figueiredo "arma-se" de um arcabouço teórico frutífero para discutir o trauma por que passaram as vítimas da barbárie militar que, em nome da democracia e dos bons costumes, paradoxalmente cerceia, justamente, a democracia. Não vivíamos democraticamente, muito embora fosse em nome da liberdade que o cerco se fechava contra o perigo vermelho. Muitos episódios, nesse sentido, são risíveis, apesar de trágicos. Aqueles que se opuseram às arbitrariedades do regime militar sofreram na pele as consequências da luta por um país justo e livre, prisioneiros da tentativa de soberania que os EUA impunham em plena Guerra Fria. Vale lembrar que o PCB, ainda durante o Governo Vargas, mantinha-se na clandestinidade e que os comunistas, para permanecerem atuantes, necessitavam consorciar-se a outros partidos legalizados.
Hoje, na segunda década do século XXI, insiste-se muito em limitar o local de fala sobre determinadas "minorias" aos componentes das mesmas: as lutas em prol de justiça social e igualdade de negros, homossexuais, transexuais, mulheres, índios etc. são legitimadas, via de regra, apenas se encabeçadas pelos próprios. Por um lado, entendo a reivindicação do "local de fala" desses grupos marginalizados e vitimizados desde sempre por uma sociedade branca, patriarcal e heterossexual, mas, por outro, a segmentação, a meu ver, fragiliza e enfraquece cada um desses grupos. Escrevendo sobre as vítimas subversivas contrárias e combatentes ao regime militar, Eurídice Figueiredo finaliza o livro com um relato pessoal, inserindo-se, assim, dentre as pessoas que vivenciaram o horror, o medo e o exílio daquele período. Pesquisadora e militante se coadunam, convergem para o mesmo ponto, e o livro encerra-se com um depoimento emocionante e humano. A leitura de A literatura como arquivo da ditadura brasileira é rica e importante não apenas porque evidencia a excelência da pesquisa, mas também porque demonstra a vivência sobre o corpus da mesma. Além, claro, de enumerar as obras que tratam de tema tão caro para a nossa história.

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017

Manso
descanso a carcaça da labuta
repouso os ossos no sofá, na cama, na grama
e fito o alto, as árvores, pássaros, nuvens, lua
meu teto é o céu.

A cabeça
não perde o ranço
abriga todas as desimportâncias deste mundo
e perpetua o trabalho
atalho -- falho? -- para o chocalho da verdade

Meu ofício é a litera(d)ura
imaginação, imaginário
de todo (extra)ordinário
ininterrupto
sem pausa

Avanço
vez a vez
na labuta
só assim (des)canso