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terça-feira, 12 de setembro de 2017

A filha do escritor, de Gustavo Bernardo


Uma mulher linda e jovem chega à Casa Verde, hospital psiquiátrico de Itaguaí, e solicita abrigo no estabelecimento enquanto aguarda a chegada de seu pai, ninguém menos que Machado de Assis. O médico que a atende, ciente de que o escritor jamais tivera filhos e falecido há mais de cem anos, prontamente diagnostica um quadro esquizofrênico para Lívia, nome com o qual a pretensa herdeira de Machado se apresenta. A brevíssima sinopse certamente é suficiente para despertar no leitor o desejo de ler esse romance de Gustavo Bernardo para descobrir quem é a filha ausente de todas as biografias do bruxo. Ou seria a paternidade mais uma de suas bruxarias?
Narrado em primeira pessoa pelo doutor Joaquim, psiquiatra da Casa Verde, que se sente perturbado com a presença de Lívia, o romance de Gustavo Bernardo, de início, apresenta coincidências inquietantes, a começar pela homonímia entre o Bruxo do Cosme Velho e o narrador-psiquiatra (ambos chamam-se Joaquim), pela arquitetura idêntica da Casa Verde ficcional construída a mando de Simão Bacamarte e a Casa Verde "real" onde trabalha o alienista contemporâneo, ambos residentes em Itaguaí, sem falar na gagueira de Joaquim, que todos sabemos ser um traço idiossincrático do próprio Machado. As coincidências não param aí. Em diálogo com o doutor Joaquim, Lívia afirma que é mãe de Luís e que nascera em 1872, o que a aproxima da protagonista do romance de estreia de Machado, Ressurreição. Leitor apenas de textos científicos, como o próprio Simão Bacamarte, "o maior dos médicos do Brasil, de Portugal e das Espanhas", o doutor Joaquim confessa que mal lera Dom Casmurro nos tempos de escola, leitura obrigatória e feita aos saltos. 
Toda a obra de Machado de Assis deve ser lida para além da "superficialidade" do enredo, uma vez que suas linhas aprofundam questões complexas e que merecem atenção. Nesse sentido, Gustavo Bernardo, que além de ficcionista é professor e pesquisador de literatura, caminha na mesma direção, ou seja, seu romance requer atenção para questões presentes nos subterrâneos do enredo e que ultrapassam o interesse primeiro apenas pela "historinha" que o narrador nos conta. 
A certeza que Lívia tem de ser filha de Machado e proveniente do século XIX, estranhando os homens do século atual dispensarem os chapéus de suas indumentárias e confusa com os bondes que se movimentam sem tração animal e sem trilhos, mais que indiciar o deslocamento temporal da personagem, evidencia a força e o vigor da literatura, aqui, em especial, a de Machado: Lívia abandona as páginas do romance machadiano e adquire vida. A ficção anima-se, o que corrobora seu poder e vigor. E isso porque não falamos dos romances mais aclamados de Machado, mas sim daquele do romancista neófito. Independentemente se considerado ou não como um dos melhores da lavra de Machado, uma vez inscrita nas páginas de obra de ficção torna-se verdadeira, real. Talvez possa-se contra-argumentar que é uma realidade ilusória, haja vista Lívia ser esquizofrênica, ou seja, sua identidade seria tão-somente fruto de sua desfuncionalidade cerebral, mental, quiçá mera imaginação. A esse respeito, afirma o narrador, no final do romance e em momento de linda reviravolta: "Concedo que a minha imaginação doentia é fértil, mas nem ela seria capaz de inventar uma mulher tão bonita e ao mesmo tempo tão sensível". Nesse momento, a suspeita do doutor Joaquim de que Lívia fosse uma professora de literatura ou mesmo aluna de pós-graduação, dado o conhecimento que possui da vida e obra de Machado de Assis, assume-se verdadeira, mas sob novo ponto de vista. Corre lá e lê o romance, obediente leitor. Tal qual Simão Bacamarte encerra "O Alienista" enclausurando-se a si próprio na Casa Verde, subvertendo o paradigma da insânia, doutor Joaquim também encerra o romance louco. A respeito da literatura de Machado de Assis, afirma o louco doutor Joaquim: "Eu também não o tinha lido até conhecer Lívia, o que é mais uma prova de que Lívia existe sim e ainda deve estar viva, viva e com os seus olhos profundamente abertos mas apagados, olhos que olham para a escuridão do aposento secreto em que a esconderam e a encarceraram". Talvez o que queira nos dizer Gustavo Bernardo, ou o narrador, ou a ficção, é que devemos compreender "as passagens sutis que existem entre o campo dos sujeitos imaginários e o campo dos sujeitos reais". Seria possível afirmarmos que somos imaginários porque antes somos reais ou vice-versa? Lívia tem de ter existido realmente, seja porque é personagem de Machado de Assis, seja porque o é de Gustavo Bernardo. Num ou noutro caso a ficção confere vida e existência a entes imaginários, provando o seu poder. Doutor Joaquim ratifica isso ao afirmar: "sacrifiquei minha paciente, sacrifiquei minha vida, tudo por causa de um amigo imaginário que é um escritor negro que morreu há pelo menos cem anos. Eu preferia ser menos inteligente a ter encontrado esse neguinho, esse gaguinho na minha frente". Desde quando Machado é imaginário? Desde quando não é? Eis a questão.
A filha do escritor formalmente também faz jus ao grande homenageado: Machado de Assis. Todos sabemos do diálogo estabelecido com o leitor na prosa do bruxo, e aqui Gustavo Bernardo adota procedimento semelhante. Ao longo de todo o romance, doutor Joaquim dirige-se a um interlocutor sem voz, que em mais de um momento levanta a suspeita de ser este o próprio leitor, principalmente por causa da forma inclemente com que trata seu outro. Não afirmo que Gustavo Bernardo consiga utilizar o mesmo tom empregado por Machado, íntimo de seu leitor e, por isso mesmo, alcunhando-o com adjetivos nada lisonjeiros, até mesmo porque Machado é inigualável. O diálogo com um possível leitor, no entanto, merece créditos. Ao final do romance, tomamos ciência de que o narrador fala sim com um outro, mas é consigo mesmo, um outro imaginário, pois é ele o louco, o esquizofrênico. Diria Quincas Borba que o humanitismo é o mesmo homem repartido por todos os homens...
Gustavo Bernardo rende um tributo a Machado de Assis e a sua literatura. A amizade que doutor Joaquim diz nutrir pelo "neguinho" e "gaguinho", que o fez sacrificar sua vida, pode ser lida e entendida, sob certo ângulo, autoficcionalmente, no sentido de que o romancista também é professor de literatura e estudioso da obra do bruxo. Mas você tem razão, leitor abelhudo, talvez essa singularidade seja pouco para falarmos em autoficção, muito embora esse dado biográfico não possa ser desprezado. O que se afirma com certeza é que a vida acadêmica de Gustavo Bernardo não diminui sua veia romancista, tampouco esta está atrelada àquela. A ficção é tudo.

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